quinta-feira, 22 de setembro de 2022

IMPASSE HÚNGARO

"Purifica-me, meu Deus, purifica-me no interior e no exterior. Purifica corpo, alma e espírito, para que os germes da luz cresçam em mim e me transformem num archote. Transforma-me em flama que transmuda em luz tudo em mim e ao meu redor".

(Prece Bogomila)

LIVRO DE CRÔNICAS DO MONGE BENEDEK, O VELHO


Hungria, ano de 1203. A grande roda da história continua rodando, sempre na mesma direção. Uma minoria opressora vivendo com muito mais do que o necessário, desfilando com toda a empáfia, pondo em destaque a miséria e a indigência da grande massa da população, responsável pelo trabalho duro e bancando, com impostos abusivos, os intermináveis banquetes e as esplêndidas vestimentas de seda e cetim dos bem-nascidos, recebendo em troca privações, frio, fome e lágrimas. Até mesmo o alívio buscado na fé é negado a eles, já que as palavras sacerdotais são sempre as mesmas, a estrutura social aparentemente injusta é formada por Deus. Rebelar-se contra isso é rebelar-se contra o Próprio Criador. Porém, o espírito de contestação, sempre presente, manifesta-se através dos sermões do padre búlgaro Bogomil, a fagulha no monte de palha seca, o pontapé na porta carcomida, o grito de revolta levantando os injustiçados para a luta. O tom conciliador da Igreja perde sua eficácia quando o povo enxerga que essa instituição também se beneficia com a situação e apenas visa conservar seus privilégios.


Deméter, o Conde de Badacsony, enxergou uma oportunidade na conversão de sua esposa Amália ao Bogomilismo. Seu confessor e padre dos tempos de infância, o atual Bispo de Keszthely, sua cidade natal, a convenceu a abraçar as verdades do novo movimento. A opção pelos pobres, a divisão justa de terras, o retorno às práticas da igreja dos apóstolos (principalmente os ensinamentos de Paulo) e o fim da opressão da nobreza e do clero corrompido foram sementes que logo floresceram na região do Lago Batalon. O Conde aderiu à causa por motivos menos filosóficos. Ele enxergou em tudo isso a oportunidade de fortalecer mais o seu feudo e livrar-se definitivamente do jugo do Papa. Por isso, não esboçou a menor objeção ao movimento, logo taxado como herético por Roma.
Fredek II, rei da Hungria, estava enfraquecido e isolado no momento. Seu pai, Bartos V, foi um guerreiro célebre, decisivo em conter a ameaça dos turcos seldjúcidas. Como agradecimento ao apoio dos seus cavaleiros, distribuiu terras prodigamente e o resultado agora era visível: um reino fragmentado, com vários barões e condes pensando apenas em seus próprios interesses. O mais preocupante era o Conde de Badacsony. Silenciosamente, maquinou e costurou alianças com oito barões e garantiu o maior contingente militar do reino. As preocupações com isso pesavam mais que sua coroa, era uma grave ameaça. Seu trono poderia ser usurpado, já que Amália era sua prima.
Para piorar, o Castelo de Szigliet, morada de Démeter, o perigoso conde, ficava na Colina Váhegyi,uma elevação com 239 metros de altura, um ponto difícil de conquistar. Qualquer tentativa de invasão seria recebida com uma nuvem espessa e mortífera de flechas.
A solução era enviar emissários por todos os reinos católicos, acenando com vantagens financeiras e promessas de cooperação futura. A resposta que ele tanto aguardou chegou depois de oito meses. O Papa Inocêncio III desistiu de dialogar com os líderes da seita rebelde e resolveu declarar o Bogomilismo uma heresia a ser varrida da Europa sem demora. O Reino da França, o Ducado da Polônia e o temido Sacro Império Romano-Germânico aderiram à causa papal.
O conde nesse momento se viu numa encruzilhada. Poderia manter sua posição, encastelado em Szigliet, ganhando tempo com um longo processo diplomático e conquistando ainda mais simpatia de seus servos e sua esposa, além de fortalecer sua posição unindo-se com Bizâncio, Bulgária, Croácia e Sérvia, velhos desafetos do Papa. Por outro lado, o mais fácil e menos honroso, poderia encontrar-se com os cardeais Benevenutto e Ambrosio no Castelo de Buda, morada do Rei Fredek. Prostrado com o rosto no pó e os braços estendidos em cruz, renegaria a causa herege e imploraria perdão à Santa Madre Igreja. Entregaria algumas dúzias de revoltosos para serem queimados e conquistaria a simpatia de Inocêncio III e mais favores do Rei.
Na verdade, qualquer das soluções traria benefícios e problemas. Os aliados de Roma estavam com as forças fragmentadas, uma boa parte de seus efetivos estava empenhada no Oriente, lutando para reconquistar Jerusalém. Manter-se hostil aos católicos traria poder e a simpatia do poderoso Império Bizantino e seus reinos satélites, porém o ressentimento papal sempre acompanharia seu reino. Jamais poderia relaxar e não poderia contar para sempre com a proteção de Bizâncio, sendo a Hungria um reino católico, afinal de contas.

Onze meses de procrastinação e discursos inflados foi o tempo que durou o impasse. Sua mente já tinha elaborado sua decisão final. Como esperado, o encontro no Castelo de Buda foi marcado quando os últimos vestígios de neve do rigoroso inverno daquele ano desapareceram. Acompanhado por uma escolta em quadrado composta por quarenta homens, a carruagem de Deméter deixou Szigliget e rumou para o encontro com os emissários de Roma. O ar da Hungria tornou-se pesado, a população mal podia esperar pelo desfecho do encontro. Contudo, o otimismo da Condessa Amália e dos sacerdotes bogomilos continuou inalterado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário