quinta-feira, 22 de setembro de 2022

FUGA NA MADRUGADA

A madrugada estava muito fria. Eu corria desesperado, não sabia por que, nem para onde. Atrás de mim, homens gritavam, ordenavam que eu parasse. Sons de coturnos castigando o chão, ameaças e palavrões ecoando. O vento gelado entrava nas minhas narinas, os pulmões fustigados e a dificuldade para respirar trouxeram à lembrança a antiga bronquite, o coração parecia tentar fugir pela boca. Gotas de suor deslizavam da testa, aumentando a sensação de frio.
Os raros moradores ainda acordados iam apagando as luzes, janelas eram fechadas… Tropecei em um buraco e desabei. A distância diminuiu uns três metros. As vozes cresciam e o medo despejava ondas e ondas de adrenalina no meu sangue. Pulei e agarrei um portão de tela enferrujado. Senti pontas de arame enferrujado penetrando nas mãos. O líquido viscoso e quente me fez perder o contato com a barra de metal e desabei. Um Rottweiller me saudou, rosnando e mostrando os dentes.
A primeira mordida foi no braço esquerdo, o animal balançava a cabeça e fincava mais e mais as presas, dilacerando tecido e carne. Mais dor e ardência, comecei a ficar tonto. Meus perseguidores, agora percebi, cinco homens com fardas militares, arrombaram o cadeado e abateram o animal com um tiro certeiro na cabeça. Fui cercado por eles e minha última lembrança foi a de suas gargalhadas de contentamento. Depois, uma forte dor nas têmporas e trevas.
O choque de um balde de água gelada me despertou. A realidade trouxe um cheiro forte de urina, luz forte em meu rosto contrastando com a escuridão do lugar, mãos atadas atrás do espaldar de uma cadeira de ferro hospitalar e dormência nos dedos. Só consegui abrir o olho direito. Senti o outro inchado, bem como meus lábios. Provável resultado de uma sequência de murros e pancadas.
— Acordou, doce? E então, vai colaborar? — disse o mais alto, com voz rouca de tabagista.
— Nós sabemos de tudo, nada de fingir não saber do que estamos falando, poupe a gente. -- disse o outro, voz pastosa e singela.
— Fale onde você escondeu o Cogumelo Mágico. Temos pentotal para soltar a sua língua, mas preferimos do jeito antigo.
— Os seus amiguinhos estão mortos, fuzilamos os dois caras e a magrinha num terreno baldio. Não tem motivo para ser idealista e fiel, diga onde guardou. Soltamos você e tudo acaba bem.
— Não participo de nenhum movimento, não sei que cogumelo é esse e jamais tive amigos ou similares.
O pontapé que levei nas costelas em seguida provocou um som seco de ossos fraturados e uma dor lancinante. Um fio de sangue escorreu do canto da boca. Vi um terceiro homem sair das sombras com um magneto de telefone antigo e dois fios com garra jacaré nas pontas. Em outras palavras, o interrogatório incluiria choques elétricos.
As descargas foram aplicadas, com duração crescente e em intervalos cada vez menores. Sentia-me à beira de um ataque cardíaco. A cada vez que dizia não saber o que seria “Cogumelo Mágico”, maior a brutalidade de meus torturadores. Apaguei mais quatro vezes, despertando com o frescor do balde de água. Fui tirado da cadeira e levado para um canto com um grande tanque de água. Começaram a me afogar nele. Passado um período que pensei durar uma eternidade, ouvi um som familiar. Sim, era ela, Natália, minha filha de dez anos!
— Pai, pai, eu estou aqui!
Naquele momento fiquei transtornado. Pegaram Natália, isso não! O que eu sofri até ali pouco importava, precisava salvar minha filhinha. Seus gritos foram ecoando cada vez mais, os outros sons do galpão abandonado sendo gradativamente abafados.
— Viu? Temos sua garota, agora vai falar! Se não vamos deitar e rolar com ela, um por um, em cima daquela mesa! Quando enjoarmos, matamos a vadiazinha na sua frente! O que acha?
— Soltem meu pai, soltem ele!
Nesse momento, os dois afogadores começaram a rir tanto que acabaram aliviando a pressão nos meus braços. Buscando o resto de força na revolta que essas palavras provocaram em mim, golpeei com vontade os testículos de um. O outro olhou com surpresa o companheiro se contorcendo no chão. Aproveitei para chutar seu estômago. Os outros três partiram para me agarrar. Batia, chutava, mordia, esperneava, o ódio me anestesiava, mal sentia a dor dos golpes recebidos. Devagar, tudo foi ficando claro, a luz me cegava, o galpão virou um quarto amplo todo pintado de branco. Eu estava deitado em uma cama de hospital, dois enfermeiros musculosos tentavam me prender com correias. Senti um tubo incômodo na garganta.
— Viu, Natália? Precisávamos conter seu pai, apesar do coma ele estava se debatendo muito, não sabemos o que estava se passando na cabeça dele. Mas seus gritos foram um sinal positivos, afinal. Fizeram-no acordar do coma induzido. Estava preocupado, foram dez dias.
Minha filhinha me agarrou pelo pescoço, soluçando alto. Marília beijou minha testa, Teodoro, meu filho, colocou a cabeça em meu peito. Fiquei sabendo do traumatismo e das drogas ministradas para induzir o coma e ajudar a combater a pressão craniana. Do acidente, nenhuma lembrança. Do sonho delirante, tudo claro e pulsante na mente. Mas o que seria o Cogumelo Mágico, afinal?

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